Coluna Escola Diversa

Sentimento de pertencimento no processo de educação

Num lugar não muito longe, numa pequena cidade, 7 pessoas viviam numa mesma casa  sendo 6 de uma mesma família. Danilo, um rapaz de 19 anos, vivia na casa e era neto do Sentor Antônio, falecido quando ele tinha apenas 09 anos. A tal família então criou Danilo ”como se ele fosse da família”.

No dia a dia era comum frases como: Danilo é como se fosse da família. Já vive aqui faz anos. E assim, dia após dia, Danilo, aquele que não era ” exatamente” da família, às vezes até se sentia parte, mas bastava qualquer situação simples e  cotidiana para que ele percebesse que não era bem assim.

Como, por exemplo, o dia em que seu quase primo Nelson,só tinha 5 ingressos para sua festa de formatura. Todos ganharam, menos Danilo. Mas, como ”consolação”, o quase primo disse que ”por ele ser como se fosse da família” seu ingresso teria um desconto de 50%.

Ou como no aniversário de sua ”quase priminha”, quando na hora da foto pediram que Danilo tirasse a foto. 

Tudo ia bem (ou na verdade, nem tão bem assim) até o dia que o senhor Damião faleceu. O senhor Damião era o pai daquela grande família de quase 7 pessoas. 

Faleceu o senhor Damião. Sempre tão alegre e animado, veio a falecer de covid. Uma tristeza. Danilo, que quase nunca fazia pedidos, desta vez fez:

  • Queria muito ficar com as ferramentas do senhor Damião. 
  • Ora, acho que ninguém vai se opor. Papai tinha tantas coisas… Não vejo problema nenhum em você ficar com as ferramentas do Danilo.

A essa altura ninguém nem lembrava (ou fingia que não lembrava) que aquelas ferramentas, na verdade, antes de serem do senhor Damião, eram do senhor Antônio, avô de Danilo. Seu Antônio trabalhava para o senhor Damião fazendo de tudo um pouco. Inclusive, muito habilidoso, começou a fazer algumas ferramentas que utilizava para seus trabalhos diários. Como Danilo era pequeno, as ferramentas feitas por seu avô, assim como tudo que foi feito com as ferramentas, ficou para seu Damião e sua família. Chegaram a dizer que:

  • As ferramentas e todas as coisas são nossas, de Danilo também. Danilo…. É como se fosse da família.

Um dia, bem pertinho da cidade, aconteceu um encontro de carros antigos. Danilo achou aquilo interessante. Conseguiu folga no trabalho e foi ao tal encontro. A cidade estava linda, animada e, bem na praça principal, uma exposição de carros antigos. Danilo, muito simpático, conversou com muitas pessoas, inclusive Luísa, que trabalhava restaurando carros antigos. 

  • Para restaurar carros antigos é preciso muita habilidade. Mas é uma habilidade que quanto mais você treina, quanto mais faz, melhor fica. Por isso alguns especialistas desenvolvem suas próprias ferramentas. 

Quando Luisa mostrou algumas ferramentas feitas por ela e por outros especialistas em restauração, Danilo lembrou na hora das ferramentas de seu avô. Inclusive algumas daquelas ferramentas eram usadas também no restauro de móveis.  

Danilo voltou para casa animado. Tinha se dado conta de que, para além de fazer coisas de mecânico de motor, seu avô era um restaurador.Procurou na internet uma série de informações, leu um livro que falava sobre história e restauração e até assistiu um filme sobre o assunto. 

  • Danilo agora só fala disso. Parece até que anda sonhando com o avô. 

Podia ser um comentário simples, mas até aquele dia Danilo nunca tinha escutado de maneira tão direta e específica sobre a paixão do avô.

O tempo passou e Danilo soube das muitas habilidades do avô, que também adorava escrever. E quanto mais sabia sobre sua história e sobre si mesmo, mais as coisas diferentes que via e aprendia no mundo tinham significado e impacto mais forte. 

Danilo conheceu Marta. Casou-se. Hoje é pai de Manoela. Professor de história da arte. Danilo não é mais como se fosse da família. Ele agora, finalmente, se sente parte. Porque é parte.

Sentimento de pertencimento no processo de educação

Olá pessoal!

Que bom estarmos juntos e juntas novamente. Espero que vocês estejam bem!

Afinal, qual a importância do sentimento de pertencimento em nossas vidas? E o que isso tem a ver com a história que contei?

A história de Danilo pode representar a história de muitas pessoas de grupos minorizados. Cada um destes grupos têm histórias muito distintas e com complexidades muito próprias e incomparáveis. Mas quando pensamos na leitura que muitas vezes se faz das pessoas destes grupos, percebemos que é uma leitura de ” ele/ela é como se fosse”. 

Este ”como se fosse” encobre uma série de problemas. 

Problemas que não são reconhecidos, partes importantes da história não são contadas. Aquela frase ” somos todos iguais” acaba por disfarçar aquilo que nos faz diferentes e muitas vezes estas diferenças não são nem reconhecidas nem respeitadas. 

Estas pessoas nascem e crescem sem ter a chance de explorar da melhor forma seu potencial. Como não se reconhecem como parte ficam entre ser gratas por ” ao menos terem alguém ”  e entre o incômodo de não ter acesso a seus pares, suas histórias e até de viver num ambiente onde a diversidade é comum. 

Imagine que, na história acima, a casa é uma escola. Danilo é a representação dos grupos minorizados, todo restante da família são aquelas pessoas que são vistas socialmente como pessoas que atendem perfeitamente aos “padrões” étnicos, culturais, estéticos, religiosos…pessoas privilegiadas porque a forma como vivem, como se comunicam e como conduzem suas vistas é considerada a forma certa de se viver. 

Danilo, que representa os grupos minorizados de uma sociedade (negros, indígenas, pcd’s, lgbtqiapn+) fica apartado de sua história. Embora seja tratado como se fosse da família, tem sua história quase que escondida, esquecida. 

Um corpo docente diverso é o que possibilita a escola ver o mundo por lentes diversas. E isso pode proporcionar um sentimento de pertencimento a todas as pessoas que fazem parte da comunidade escolar. Pessoas que nasceram em contextos sociais diversos, que lidam com o mundo e com suas questões de maneira também diversa. Uma mulher sair de casa cedinho para ir trabalhar é uma experiência muito diferente de um homem que também sai de casa cedo para trabalhar. Se é uma mulher negra ou não negra, se é uma pessoa com deficiência física, por exemplo, as particularidades podem ser ainda maiores.

Uma aula de história, uma solução proposta pelo coordenador, um tema central para uma festa de final de ano, tudo isso será atravessado pelos tomadores de decisão destas ações: Quem são, como vivem, como enxergam e como são enxergados pelo mundo. 

As contribuicoes de uma pessoa que vivencia a vida sendo um homem, sendo um homem branco, negro, sendo uma mulher, sendo uma criança…são contribuicoes ricas que precisam somar em nosso repertório. 

Na vida, o que mais ensina e educa são os relacionamentos, principalmente aqueles carregados de afeto. As  pesquisadoras Linda Darling-Hammond e Channa M. Cook-Harveyc, do Learning Policy Institute (EUA) , revelaram que as crianças aprendem melhor quando se sentem seguras e apoiadas. Do mesmo modo, seu aprendizado é prejudicado quando vivenciam situações de medo ou trauma nos espaços de aprendizagem principalmente em situações de estresse nas quais deveriam receber apoio. 

E podemos pensar: É quase impossível receber apoio de quem não tem empatia com aquilo que estamos vivendo. Não devemos ter empatia somente com coisas que nós mesmos vivenciamos diretamente mas, é fato que, ou quando vivenciamos ou quando já tivemos, de alguma forma, contato com  aquilo que aconteceu com nosso próximo, a dimensão do que sentimos é mais forte.  

Se tem professores com deficiência física em sua escola, você experiencia isso. Se tem diretores e coordenadores negros, diretoras mulheres, diretoras surdas, com baixa visão… Você vai experiênciar isso e isso vai afetar completamente sua vida. 

Voltando para Danilo, nosso personagem, se sua ”quase família” tivesse se permitido ser mais diversa, acolhendo com afeto e verdade seu avô, a história do seu avô e por consequência, a história de vida do próprio Danilo teria sido diferente. 

A quase família de Danilo considera que existe um único padrão de família, por isso, embora se sentisse moralmente forçada a considerar Danilo uma pessoa próxima, ele era um quase familiar. 

E no dia a dia também vemos isso: É aquela pessoa que diverge dos padrões sociais (padrões estes preconceituosos, racistas, machistas, lgbtqipn+ fóbico) e que o grupo que a recebe finge inseri-la mas, no fundo, está marcado, mesmo que sutilmente que existe ela e o grupo. Separadamente. 

É o abraço não dado.

O olhar de canto de olho.

A fala que deseja ser engraçada, mas é maldosa. 

O convite esquecido.

A interrupção da fala.

O medo de voltar com a pessoa de carona. 

A deslegitimação da pessoa quando ela propõe um novo tema de projeto. 

A desconfiança se o currículo da pessoa é verdadeiro. 

Ou aquela famosa frase ”não fui com a cara dele, não sei porque”. 

Precisamos falar sobre isso entre nós, na escola. Reconhecer as falhas, manifestar o desejo de mudar. 

Não se vence o inimigo invisível. 

O relacionamento, a convivência, educam de uma forma singular. Porque relacionamento cria afeto. 

E como vocês sabem…

Esta história não acaba nem aqui nem lá.

Esta história tem muito para contar. E eu, que já estou indo embora, te conto já já.

Até a próxima

Sobre o(a) autor(a)

Artigos

Formada em Gestão Socioambiental, com especialização na mesma área pela UFRJ, Janine Rodrigues começou a escrever aos 8 anos de idade e hoje, além de escritora, é educadora e fundadora da Piraporiando, uma das 10 Edtechs mais importantes da América Latina. A Piraporiando é voltada à Educação para a diversidade e desenvolve experiências e conteúdos antirracistas, antibullying, antipreconceito e de promoção da equidade de gênero. Eleita pela Forbes como uma das 12 pessoas negras mais inovadoras, Janine trabalha pela qualidade da educação no Brasil e, atualmente, assina a coluna Escola diversa no blog Redes Moderna.