Coluna Escola Diversa

Verdades e mentiras da nossa história e suas consequências para a educação

Olá!! Que bom nos encontrarmos aqui novamente. Antes de entrar no assunto deste mês preciso fazer um agradecimento especial a todos e todas que de alguma forma interagiram com o artigo do mês passado ”Preconceito linguistico”.  Fico feliz com o engajamento para que possamos fazer deste espaço um lugar de aprendizado e construções coletivas! 

O tema deste mês: Verdades e mentiras da nossa história e suas consequências para a educação  tem muito a ver com o assunto anterior, afinal, o preconceito, o racismo, a discriminação nos afastam da verdade. Nos afastam de conhecer o outro e a história sobre o outro. E assim, sem relacionamento, vive-se uma história única, contada como verdade absoluta, passada de geração para geração. 

E é sobre algumas destas  ditas ”verdades” que quero falar.

Se a história é sempre contada a partir de uma única perspectiva e esta perspectiva é a de quem não reconhece a importância e valor cultural, social, econômico, simbólico de outros, então a história única se torna verdade e isso não é nada bom, principalmente para a educação.

Descobrimento do Brasil 

A expressão ” Descobrimento do Brasil” pode ser frase naturalizada em nosso meio, ainda presente na fala de muitas pessoas mas, dizê-la, reforça uma ação de apagamento da história e da presença dos povos indígenas neste território muito antes de ele se chamar Brasil. Hoje, todo solo que pisamos no Brasil é terra indígena (ou foi algum dia). 

A chegada dos Europeus aqui foi violenta e precisamos problematizar isso ao ensinar. 

Há um tom romantizado e é irresponsável simplesmente contar que o Brasil foi descoberto pelos portugueses sem problematizar como tudo aconteceu. 

É uma prática danosa mostrar o povo que aqui chegou como sendo os salvadores. Como sendo os que tinham a cor certa, a religião certa, os costumes certos, a beleza, a inteligência…

Ao fazer isso coloca-se os povos indígenas como os que precisavam de salvação. Como os que não tinham inteligência, cultura, saberes próprios.

A chegada dos Europeus neste território e sua pressão violenta para dominar os povos indígenas, torná-los cristãos, forçá-los a toda forma de submissão, precisa ser considerada no processo de ensino e educação. O Brasil, portanto, não foi descoberto. Até porque naquele momento nem era ainda ” Brasil”. O que ocorreu foi então uma invasão, uma dominação, e é a partir desta violência que ”nasce” o Brasil.

Abolição da escravatura

Povos indigenas e povos negros estao na base da sociedade Brasileira. Foram estes povos que tiveram suas histórias e suas vidas atravessadas pelo exercício de poder dos povos europeus. No decorrer da história, mesmo as poucas conquistas dos povos negros foram atribuidas à pessoas brancas, como é o caso da abolicao da escravatura. 

Será que a  abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, teve como elemento determinante a assinatura da Lei Áurea, e que por bem querer da Princesa Isabel, que assinou tal Lei é que  teria ocorrido o fim à escravidão no Brasil? Não. Definitivamente não. 

A pressão dos ingleses e a aprovação da Lei Eusébio de Queirós deixou os portugueses numa situação bem difícil para seguir com a escravização mas, além disso, algo poderoso estava acontecendo: O movimento abolicionista

Existia uma forte luta e mobilização de pessoas negras que lutavam para o fim da escravização: a insubordinação negra, estratégias para conseguir comprar cartas de alforria, a criação de quilombos, a rebeldia de quem soube negociar com ”seus ”senhores e um grupo valente composto, por exemplo, por Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, Aqualtune, Maria Firmina dos Reis, Esperança Garcia, Tereza de Benguela/Rainha Tereza do Quariterê, Maria Felipa de Oliveira foram  determinantes para o  fim da escravização. 

Pessoas negras escravizadas se mobilizaram economicamente para comprar sua própria alforria. Pessoas escravizadas usavam, por exemplo, a caderneta de poupança para este fim, pois, com a Lei do Ventre Livre,podiam abrir uma conta na Caixa Econômica para obter sua carta de alforria.

Existem hoje aproximadamente 85 registros destas cadernetas já que a maior parte foi queimada pelo governo, que temia ter que pagar indenizações aos ex- escravizados no Brasil.

Índio vive na Oca e não usa celular

O Brasil tem aproximadamente 307 povos indígenas diferentes. Línguas, costumes, crenças, hábitos diferentes, tradições ricas e antiquíssimas. Na maioria das vezes que se usa a palavra índio, o uso é preconceituoso e tenta resumir a ” uma coisa só” tudo que aquela pessoa indígena representa. 

Vou dar um exemplo simples, que não se iguala mas que ajuda a compreender melhor o que estou dizendo: Imagine se de hoje em diante as pessoas simplesmente se referirem a você como latino. Ou como sul-americano. Não é uma ofensa, de forma alguma. Diz um pouco sobre você? Sim. Um pouco.

Mas e dizer que você é brasileiro. Faz diferença? Com certeza faz. Quando alguém diz que você é Brasileiro isso te coloca num lugar cultural e social muito mais específico. Ser brasileiro, por exemplo, te isenta de ter que ter visto para entrar em alguns países. Ser brasileiro significa que em seu país não há obrigatoriedade de você ter uma religião, pois o Estado é Laico, ou seja, há separação administrativa entre Estado e Igreja.  

A situação com os povos indígenas é muito mais complexa e grave que estes exemplos acima. Imagine que para os povos indígenas que  já estavam aqui antes mesmo da história do Brasil começar, ser visto como um único grupo? Há uma intenção de resumir a uma coisa só toda a pluralidade, diversidade e complexidade presente nas culturas indígenas. E sabe porque eu falei lá em cima ” Índio vive na Oca. Índio não usa celular”? Porque é isso que a história única faz. Tenta imprimir que todo Índio vive na Oca quando, na verdade, os povos indígenas vivem em territórios diversos e podem morar na biboca, caiçara, capuaba, copé, copiar, jirau, maloca, oca…

E se uma pessoa indigena usa celular e calça jeans? 

Se essa pergunta passou pela sua cabeça algum dia, já vale você se aprofundar ainda mais no que comentei sobre o mito da história única. Sobre o problema de se ter uma visão única sobre alguma coisa e principalmente quando esse olhar foi construído com vieses preconceituosos. 

Até porque imagine só: povos não indígenas invadem, matam, maltratam e exploram os povos indígenas. Muitos destes povos ficam sem segurança, sem alimentação, sem território e migram para a cidade grande. Chegando lá, são criticados porque estão na cidade e ”lugar de índio” é na aldeia… Faz sentido isso? 

E outra coisa importantíssima: Independente da  motivação para viver na cidade ser a violência (na maioria das vezes é)  ou não, toda pessoa tem direito de ir e vir. De ser, de viver, de desejar. 

Então se uma pessoa indígena quer ir para a cidade. Quer ir para a universidade, sendo a motivação a extrema violência que estes povos sofrem ou sendo qualquer outra motivação, sua vida é legítima e isso não torna esta pessoas menos indígena em nada.

Grécia, berço da Filosofia?

Acho que você já ouviu falar de Sócrates, Aristóteles, Platão… Acho que sim!

Mas e Ptahhotep, Imhotep?

Não vou destacar aqui se o berço é Grécia ou África. Meu interesse maior é falar sobre o fato de que precisamos viabilizar outros nomes para além dos gregos. 

Vou te contar o que aconteceu: Os textos egípcios são documentos africanos mais antigos do que os escritos gregos, que são referências da cultura ocidental. 

Grandes referências da egiptologia como Jean-François Champollion, Cheikh Anta Diop, Theóphile Obenga e Jan Assmann demonstram em seus trabalhos científicos que os textos egípcios são mais antigos do que os gregos. O que ocorre é que estes textos não foram reconhecidos como sendo filosofia e daí então, textos posteriores registrados na Grécia e agora sim sendo chamados de filosofia, assumiram o lugar de ”pioneirismo” e são considerados berços da filosofia até os dias atuais. 

O Egito era muito rico em produção filosófica. Ptahhotep, por exemplo, era um importante funcionário de Isesi (Faraó da 5o Dinastia). Ptahhotep tinha uma função importante. Ele era rekhet (ou podemos chamar de filosofia).

Vale ressaltar que a maior questão aqui não é só onde nasceu ou não nasceu a filosofia ou a escolha de um ou outro filósofo como o mais importante. Mais urgente que isso é problematizar que quando se fala de filosofia, na maioria das vezes, a história única é a de que está unicamente na Grécia os maiores e mais importantes feitos e isso não é verdade. 

Para continuar neste tema indico duas leituras:

  • A filosofia antes dos gregos, Carreira
  • Escrito para a eternidade: a literatura no Egito faraônico, de Emanuel Araújo. 

E por falar em Grécia e África…

Já pensou em fazer um projeto na sua escola sobre Mitologia Grega? Seria algo tranquilo e natural? Visto como um projeto educacional, cultural, rico em elementos simbólicos? Afinal, vários filmes abordam Zeus, Poseidon, Atena, Apolo, Ártemis, Hefesto, Afrodite, Dionísio, o herói Aquiles.. 

Mas e um projeto educacional, cultural, rico em elementos simbólicos sobre mitologia africana? Seria recebido pela comunidade da mesma forma?

A mitologia Iorubá é definida por Itans de Ifá. Nomes como Olorum, Oxalá, Orum devem ser nomes já conhecidos pela comunidade escolar mas, que tipo de sentimento esses nomes, do ponto de vista histórico e cultural, despertam? 

Se em um projeto de mitologia grega não há preocupação em doutrinar uma pessoa a seguir os ensinamentos e crenças do povo grego, por que isso ocorre com a mitologia africana? Sabemos o motivo. O motivo é o racismo.

Espero que estas reflexões contribuam para novos olhares, para gerar curiosidade que desdobre em mais conhecimento e criatividade. Afinal, somos seres curiosos. Quando nascemos, tudo é novo ao redor, tudo desperta curiosidade. Cada som, cada cor, cada sensação nos move a querer saber mais, para querer saber os porquês, os onde, os como da vida ao redor e dentro da gente. Que isso não se apague! Que essa chama do saber viva esteja sempre dentro da gente! 

Vou terminando por aqui. Mas com a alegria de saber que em breve vou voltar, afinal, essa história tem muito para contar. E ela não acaba nem aqui nem lá. E eu, que já estou indo embora, te encontro já já!!

Janine Rodrigues

Escritora, educadora e fundadora da Piraporiando

Sobre o(a) autor(a)

Artigos

Formada em Gestão Socioambiental, com especialização na mesma área pela UFRJ, Janine Rodrigues começou a escrever aos 8 anos de idade e hoje, além de escritora, é educadora e fundadora da Piraporiando, uma das 10 Edtechs mais importantes da América Latina. A Piraporiando é voltada à Educação para a diversidade e desenvolve experiências e conteúdos antirracistas, antibullying, antipreconceito e de promoção da equidade de gênero. Eleita pela Forbes como uma das 12 pessoas negras mais inovadoras, Janine trabalha pela qualidade da educação no Brasil e, atualmente, assina a coluna Escola diversa no blog Redes Moderna.