O que há de comum entre Ângela Lago, Cecília Meireles, José Paulo Paes, Mário Quintana, Ruth Rocha, Tatiana Belinky e Ziraldo? Além de talentosos escritores, todos escreveram livros de ABC[1].
No Brasil, desde o final do século XIX, eram muito comuns as Cartas do ABC, que traziam o alfabeto escrito de várias formas, valorizando a grafia. Apoiavam o trabalho com o método alfabético, de natureza sintética, que se caracterizava pela soletração. Esses livretos tinham, portanto, uma função eminentemente pedagógica com foco no aprendizado das letras.
Na cultura oral, a prática de recitar o alfabeto também sempre esteve presente em muitas brincadeiras infantis, principalmente, nas de pular corda. Quem não se lembra desta parlenda:
É essa função lúdica herdeira da tradição oral que está presente nos abecedários poéticos dedicados à infância em que escritores tão excepcionais, livres do caráter pedagógico, mergulham na dimensão estética da linguagem, na criação literária. Ainda assim, por associarem letras, texto e imagem, esses livros podem proporcionar boas situações de aprendizagem, pois, além de chamar atenção para a grafia das letras e os sons que elas representam, introduzem as crianças na leitura de textos poéticos, favorecendo a reflexão sobre a camada sonora da linguagem, mergulhando nas rimas e aliterações.
Quem gosta de livros de ABC (preciso confessar que sou uma colecionadora compulsiva) sabe que, em termos de assunto, os animais são campeões absolutos, tanto em livros que apresentam os conteúdos de um modo divertido em ordem alfabética, como faz Nilson Machado, em Bichionário, publicado pela Escritinha; como em livros não ficcionais, os chamados informativos. São exemplos dessa última categoria dois títulos de Geraldo Valério: Abecedário de aves brasileiras e Abecedário de bichos brasileiros, publicados pela WMF Martins Fontes. É notável, nos dois tipos de abecedários, a riqueza das ilustrações que tornam as obras ainda mais interessantes para os leitores iniciantes ou os que estão em fase de alfabetização.
Pois não é que apareceu mais um livro de ABC – Bichos Bichentos – um abecê de criaturas esquisitas, melequentas e curiosas, de Claudio Fragata e Raquel Matsushita, recém-lançado pela editora Moderna?
Abre esse livro uma espécie de mestre de cerimônias: Anacleto, que é apresentado ao leitor com um delicioso limerique (poema de cinco versos com uma rima no primeiro, segundo e quinto e outra no terceiro e no quarto) de fazer inveja a Edward Lear, pintor e escritor inglês, conhecido por divulgar o gênero:
Como o próprio título deixa tudo muito claro, o leitor não pode reclamar de jeito nenhum por encontrar na letra B, em lugar de uma delicada e colorida borboleta, uma nojenta e asquerosa barata!
Em Bichos Bichentos, há poemas que exploram o ritmo, as rimas, a repetição de palavras; há outros que exploram o espaço, revelando a materialidade das palavras em inventivos poemas visuais. Escritos em caixa alta, os poemas contrastam com o colorido das páginas e com o destaque dado à letra focalizada. Veja este exemplo:
O leitor atento deve ter reparado neste pequeno detalhe da página:
Isso mesmo! Cada uma das letras do alfabeto é apresentada, também, em Libras (Língua Brasileira dos Sinais). Muito bom, não é?
Há mais. Ao final do livro, um divertido glossário apresenta informações extras sobre cada um dos bichos homenageados, porém de uma maneira singular: em lugar de investir na obviedade das notas expositivas, são os próprios bichentos que falam de si em primeira pessoa. Veja como o kiwi se apresenta:
Eu sou uma ave da Nova Zelândia, mas não sou qualquer uma, sou o símbolo do meu país. Tenho asas, só que são tão curtas que não consigo voar. Vivo o tempo todo no chão, procurando vermes e insetos para comer. Tenho bigodes, como os gatos, que são chamados de vibrissas. Com eles eu me oriento, já que minha visão não é das melhores. Em compensação, minha audição e meu olfato são ótimos! Ah, quer saber a resposta para a dúvida dos autores: batizaram a fruta com meu nome porque a acharam parecida comigo. E quer saber? Também acho.
KIWI
Ao final e ao cabo, Anacleto se despede… e nós nos despedimos também recitando o abecê. Viva todas as letras, principalmente, o P de poesia!